O Tradicionalismo Latino é Inimigo das Tradições Orientais



O que ocorria no passado

“Os ritos orientais são um monumento perene à obstinação desses povos... os Levantinos nunca serão católicos em seus corações até que sejam latinos, e filhos de latinos nascidos e criados no rito latino [6]”

Dom Guglielmo Massaia citado por Donald Crumey, Priests and Politicians (Oxford, 1972), p.80. 

A citação acima resume e retrata bem a mentalidade da maioria dos missionários ocidentais que adentraram em regiões onde as tradições cristãs eram orientais (da maioria). Conforme falamos na publicação sobre latinização, os missionários exerciam poder de influência com o propósito de provocar a mudança para o rito latino ou então de latinizar o rito oriental, a fim de o torna-lo mais ‘agradável’ ao modo ocidental latino.

Os defensores da latinização, ainda hoje, alegam a seguinte 'sutilidade' para defenderem tal desvio:

‘’Muitos desses orientais aderiram por livre vontade ou naturalmente, porque viam algo de positivo em usos e devoções latinas, então seriam toleráveis e até lícitas, conforme às orientações papais (que proíbem a imposição apenas) ...’’

Tal questão procede, porém ela acontecia exatamente por uma constante mentalidade que era pregada, que conforme a citação de Massaia atesta, de que para haver unidade e verdadeiro catolicismo, só era possível no Rito Romano ou em algo próximo a ele, daí a massiva indução à assimilação das tradições latinas que os orientais eram submetidos.


[Numa outra publicação falaremos de tais imposições no ramo da linguagem, espiritualidade e teologia]


Atestando tal tese, vemos na história do Patriarca Cirilo Tanas, primeiro Patriarca da Igreja Católica Greco-Melquita, unida à Roma, que junto com seu tio, Dom Eutímio Saifi, promoveram a latinização no Rito Bizantino, provavelmente com o estímulo dos missionários latinos, principalmente franciscanos, o que gerava desconfiança em alguns, especialmente os monges. Cirilo é fruto da educação latina em Antioquia, os latinos já estavam inseridos na história da Sé Grega de Antioquia desde as Cruzadas, chegando até a participarem da formação dos clérigos e leigos, Cirilo também estudou no Ocidente, na França, e todas essas coisas e vivências provavelmente contribuíram para que Cirilo tivesse a mesma mentalidade de que para haver unidade, só com práticas ‘agradáveis’ aos latinos.

Também vemos isso no controverso Sínodo de Zamość, em 1720, em que o Sínodo (Bispos Orientais) esteve reunido, porém comandado por um Bispo Latino, o núncio Papal na Polônia, Girolamo Grimaldi. O padre ucraniano, Casimir Kucharek, fala em uma obra sobre uma das causas do reformismo litúrgico em Zamość:

‘’[...] esse antigo rito ortodoxo estava ‘escandalizando os latinos’ [...]" (THE BYZANTINE-SLAV LITURGY OF ST. JOHN CHRYSOSTOM)

Coincidentemente tal Sínodo foi o ‘pontapé legal’ para uma verdadeira latinização do Rito Bizantino-Eslavo, exatamente porque, pela sensatez, é lógico pensarmos que tal mentalidade latina influenciou, mesmo que sem o uso da pressão, a decisão dos bispos orientais.


O ‘THE MELKITE CHURCH AT THE COUNCIL’, original francês de 1967, relata que mesmo com as proibições papais, as latinizações ocorriam constantemente, pois as punições não eram aplicadas de fato. Tal situação se prolongou por muitos anos, isso provocou as reivindicações sobre o assunto no Concílio Vaticano II por parte de muitos prelados, principalmente melquitas.



Concílio Vaticano II – O ecumenismo com os ortodoxos, a exortação à preservação dos Ritos Orientais e a oposição dos tradicionalistas latinos

No Concílio Vaticano II, as Igreja Católicas Orientais tiveram grande lugar de fala, sendo escutados em diversas questões importantes, com isso, muitos viram no Concílio a oportunidade de denunciarem o erro das latinizações e como elas prejudicavam a unidade da Igreja e o exemplo que era passado aos ortodoxos separados da Sé Romana. Podemos destacar o Patriarca Melquita Maximus IV, que foi uma grande voz no assunto e gerou diversas discussões internas a respeito, que culminaram no Decreto Conciliar Orientalium Ecclesiarum, que podemos destacar uma parte:

”A história, as tradições e muitas instituições eclesiásticas claramente atestam quanto deve a Igreja universal às Igrejas Orientais. Por isso, (…) saibam e tenham por certo todos os Orientais que sempre podem e devem observar os seus legítimos ritos litúrgicos e a sua disciplina; e que não serão introduzidas modificações a não ser em razão de um progresso próprio e orgânico. Tudo isto, pois, deve ser observado pelos próprios Orientais com a maior fidelidade.”

Não por acaso, o Arcebispo Melquita Joseph Tawil, em sua exortação famosa, "A Coragem Para Sermos Nós Mesmos", cita o Concílio Vaticano II:

"A primeira fonte de assimilação espiritual para os católicos orientais tem sido o fenômeno conhecido por “latinização”, a reprodução da teologia, das práticas espirituais, e dos costumes litúrgicos da Igreja Latina, em suas igrejas. Latinização implica tanto crer na superioridade do Rito Romano – a posição denunciada pelo Vaticano II – quanto desejar o processo assimilatório, uma opinião com a qual não podemos assentir. Não só é desnecessário adotar os costumes do Rito Latino para manifestar o Catolicismo, como isto é uma ofensa à unidade da Igreja. Como falamos acima, fazê-lo seria uma traição à nossa missão ecumênica e, em sentido ainda mais forte, uma traição à Igreja Católica."

Para muitos orientais, e Maximus se inclui nisso, Roma só teria mais ‘reputação’ no diálogo com os ortodoxos, quando passasse a tratar seriamente as Igrejas Católicas Orientais, a começar por uma condenação prática da latinização (o Patriarca Gregorios III também fala algo na mesma linha). Teólogos ocidentais entusiastas do ecumenismo pensavam da mesma forma, como é o caso de Yves Congar, que defendeu a preservação das tradições orientais nas Igreja Orientais, como forma de se mostrar coerente no diálogo ecumênico com os ortodoxos. De fato, vemos que ecumenismo, Igrejas Católicas Orientais e preservação de suas tradições andam lado a lado.


A ânsia de ecumenismo com os ortodoxos nasce bem antes do Vaticano II, com Leão XIII, principalmente pela idealização do que seria concretizado por Bento XV, em 1917, do chamado, Pontifício Instituto Oriental de Roma, um centro de estudos sobre as Igrejas Orientais, suas liturgias, tradições, teologias, espiritualidades etc. Desde o início, este centro aceitou ortodoxos como alunos, a intenção era também proporcionar um diálogo para maior entendimento entre ambos os mundos (Oriental e Ocidental). Poderíamos também falar do primeiro Mosteiro Ecumênico, o de Chevetogne, na Bélgica, fundado pelo beneditino Dom Lambert Beauduin, ele foi aprovado por Pio XI, com o intuito de dialogar com os ortodoxos russos principalmente. No Concílio Vaticano II apenas aconteceu uma maior dedicação à causa e as Igrejas Católicas Orientais colocaram sua contribuição.







Essa questão ecumênica foi atestada na relação entre o Patriarca Ortodoxo de Constantinopla, Atenágoras, e o Patriarca Maximus. Atenágoras tinha grande admiração por Maximus, por sua postura em defesa das tradições bizantinas, principalmente durante o Vaticano II.

O fato é que com o Concílio Vaticano II, muitas Igrejas Orientais passaram a resgatar suas antigas tradições orientais contra a latinização de até então. Oposições surgiram, na Igreja Melquita inclusive, mas elas não tiveram tanto sucesso, o pior houve na Igreja Católica Greco-Ucraniana, em que a latinização chegou a níveis ‘absurdos’.

Para o tradicionalismo latino, que se opõe radicalmente ao Concílio Vaticano II, o ecumenismo deve ser rechaçado de todas as formas, mesmo com os ortodoxos. Este fato nos coloca numa divergência de visão geral da vida da Igreja, em que os tradicionalistas continuam com a mesma visão de mundo daqueles mesmos missionários latinos do passado. Isto veremos agora:

No seio da Igreja Ucraniana, nasceu um grupo chamado, Fraternidade Sacerdotal São Josafá, este grupo começou a beber das ideias dos tradicionalistas latinos, principalmente contra o ecumenismo do Vaticano II, coincidentemente este grupo também se coloca até hoje contra à des-latinização da Igreja Católica Greco-Ucraniana. Uma breve adição sobre esta facção:

"O SSJK rejeita as reformas de des-latinização que estão sendo fortemente aplicadas na Igreja Católica Grega Ucraniana , que está em plena comunhão com Roma. Essas reformas começaram com as correções, nos de 1930, dos livros litúrgicos do Metropolita, Andrey Sheptytsky. De acordo com seu biógrafo, Cyril Korolevsky, no entanto, o Metropolita Andrey se opôs ao uso da força contra os latinizadores litúrgicos. Ele expressou temor de que qualquer tentativa de fazer isso levasse a um equivalente católico grego do cisma de 1666 da Igreja Ortodoxa Russa (Velhos-Crentes). A des-latinização da UGCC ganhou mais impulso com o decreto Orientalium Ecclesiarum, de 1964, do Concílio Vaticano II e vários documentos subsequentes. Isso resultou no descarte das latinizações dentro da diáspora ucraniana. A ocupação soviética da Ucrânia Ocidental, entretanto, forçou os católicos bizantinos a uma existência clandestina e as latinizações continuaram a ser usadas na clandestinidade. Depois que a prescrição contra o UGCC foi suspensa em 1989, vários padres e hierarcas da UGCC chegaram da diáspora e tentaram impor a conformidade litúrgica. Em seu livro de memórias Persecuted Tradition , o padre Basil Kovpak (líder da fraternidade) acusou a hierarquia UGCC de usar intensa pressão psicológica contra padres que estão relutantes ou não querem deslatinizar. Ele alega que numerosos leigos, ligados às latinizações desde os tempos da clandestinidade, preferem ficar em casa no domingo, a assistir a uma liturgia deslatinizada. O SSJK, por exemplo, se opõe à remoção das estações da cruz, do rosário e outros elementos da traição latina. Ao rejeitar essas reformas, eles também rejeitam o direito das autoridades da Igreja de fazer essas reformas; assim, quem controla o formato da liturgia se torna um importante ponto de debate. Os críticos do SSJK apontam que sua prática litúrgica favorece serviços severamente abreviados e devoções importadas do Rito Romano em vez das práticas tradicionais e autênticas devoções antigas da Tradição Oriental e particularmente da Igreja Católica Grega Ucraniana. Os proponentes contestam que esses símbolos e rituais "latinos", emprestados de seus vizinhos católicos latinos poloneses, há muito são praticados por católicos gregos ucranianos, em alguns casos há séculos, e que suprimi-los é privar os fiéis católicos ucranianos de uma parte de sua própria herança sagrada. O ponto central da disputa é sobre o que constitui "desenvolvimento orgânico". A Santa Sé, entretanto, argumentou já antes do Concílio Vaticano II, que a latinização não era um desenvolvimento orgânico. Exemplos frequentemente citados disso são, a encíclica Orientalium Dignitas do Papa Leão XIII, de 1894, e as instruções de São Pio X, de que os padres da Igreja Católica Russa deveriam oferecer à Liturgia: "Nem mais, nem menos, nem diferente" do que os ortodoxos e o antigo clero ritualista.’’






Para o tradicionalista comum, a mentalidade do ‘’Rito Romano superior aos demais’’ ainda deve ser praticada. Preservar as tradições orientais, para ele, é ser um ‘ortodoxo cismático’, pois ‘choca’ o costume latino, para eles a unidade é literalmente uma unidade de usos, teologia e espiritualidade. Ele também se opõe por entender qualquer ecumenismo como algo ruim, e por isso, preservar as tradições das Igrejas Católicas Orientais, seria uma forma de relativismo e ‘rebaixamento’ ante os ortodoxos.

Para provarmos brevemente tal questão, usaremos a citação de Dom Marcel Lefebvre, o maior líder do movimento e causa tradicionalista. O clérigo francês numa ocasião disse que ‘’a multiplicidade de ritos’’, seria fruto de uma ‘’intervenção maçônica’’ na Igreja, que se deu com o Concílio Vaticano II. Lefebvre se referia provavelmente às reformas do Rito Romano, porém falar em ‘multiplicidade de ritos’ como algo negativo em si, denota uma clara divergência de visão quanto à diversidade litúrgica defendida pelos católicos orientais, obviamente porque Lefebvre estava inserido na mentalidade dos mesmos missionários latinos do passado, da negação ao Concílio e suas novas abordagens quanto ao ecumenismo e preservação da diversidade sóbria na Igreja, de que unidade é unidade de rito, tradição etc. Coincidentemente (ironias à parte), a Fraternidade Sacerdotal São Josafá, a mesma que apoia latinização, é atualmente ligada à FSSPX, fundada por Marcel Lefebvre.



A presença de tradicionalistas em Igrejas Católicas Orientais no Brasil

Fato curioso e interessante, é a atração que muitos tradicionalistas, especialmente jovens, têm em visitar paróquias de Rito Oriental, procurando por algo mais 'tradicional' à Missa Nova, porém se comportam como se estivessem numa paróquia latina, fazem isso, não por inocência ou desconhecimento, mas por convicção. As vivências da experiência e os relatos que chegam, são sempre os mesmos, quando eles se instalam e passam a frequentar as paróquias orientais, iniciam uma tentativa de assimilar certos elementos orientais aos usos latinos. Isso ocorre devido à mentalidade ainda relutante da latinização, num local, que por diversos problemas, faz com que tal mentalidade ainda seja comum.

Nos relatos já recebidos, pessoas contam que padres latinos da linha tradicionalista, 'soltam' certas críticas à teologia, espiritualidade e certos usos litúrgicos bizantinos, caso o fiel mostre interesse em frequentar uma paróquia bizantina. Tal mentalidade só afeta a saúde da unidade da Igreja.



Conclusão

O intuito da exposição aqui feita, não é declarar ‘guerra’ ao tradicionalismo latino, mas colocar um pouco de sinceridade no cenário. Se os católicos orientais querem usufruir melhor dos tesouros antigos do Oriente Cristão, devem estar cientes de que o tradicionalismo é uma das relutâncias do espírito dos antigos missionários latinizadores.

As Igrejas Católicas Orientais são pontes entre os ortodoxos e a Sé Romana, mas não querem ser 'pontes de pressão' ou de 'estratégias escusas', como fora usadas no passado, mas de diálogo e de mútuo entendimento, na caridade e no amor, na verdadeira unidade.

Convém citar novamente o Arcebispo Tawil:

"Por nossa fidelidade em manter nosso patrimônio, por nossa recusa em sermos assimilados, oferecemos, como Igrejas Orientais, um precioso serviço para Roma em ainda mais uma área da vida da Igreja. Latinizar o pequeno número de orientais não seria um ganho para Roma; pelo contrário, impediria – talvez para sempre – a união com as igrejas separadas do Oriente e do Ocidente. Seria fácil, então, para a Ortodoxia ver que a união com Roma leva impreterivelmente à assimilação eclesial."

Comentários

  1. Olá, penso que algumas referências são pontos de parada obrigatória para escrever o que quer que seja sobre esse assunto. Por exemplo, uma referência obrigatória é a bula Quo Primum Tempore (ano 1570) do papa São Pio V que estabelece que ritos com uso ininterrupto durante 200 anos devem ser mantidos. Com isso o papa conseguia neutralizar a influência protestante sobre os ritos da missa que estava nessa faixa de tempo. Essa bula terá influência até o Concílio Vaticano II. Outra coisa que gostaria de dizer é: o ecumenismo favorece os orientais só aparentemente. O ecumenismo considera as expressões de fé como experiência subjetivas, logo todas elas tem o mesmo valor, pouco importa a declaração objetiva do credo de cada uma. Para bem entender estas coisas é preciso diferenciar o que é essencial e o que é acidental, o que é de fé e o que é auxílio para a fé. As estações da cruz ou o rosário não é razão suficiente para separar os cristãos, isso é acidental e tem igrejas latinas que nem tem essas devoções.

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