Latinização: Problema Ainda Relutante


Definição do Fenômeno

A latinização, no universo das Igrejas Orientais, é a ocorrência de um processo ou atos de assimilação à tradição latina que uma tradição oriental sofre, isso é externado principalmente na Liturgia, mas também pode ir além, como na teologia, na linguagem e práxis em geral. Como a questão mais comum e inicial se dá pela Liturgia na maioria dos casos, nos reservaremos à Liturgia, que é quando uma Liturgia oriental sofre a intervenção de elementos oriundos da tradição latina, de forma não espontânea e até imposta às vezes. 


Apanhado geral do surgimento do fenômeno

A latinização nasce num contexto de sentimento de superioridade da tradição latina entre as demais, tal sentimento é colocado em prática principalmente pelos missionários ocidentais que se colocaram em missões no Leste Europeu e Oriente Médio, com destaque para os dominicanos, franciscanos e jesuítas. No entendimento de tal mentalidade, para haver unidade na Igreja, era preciso haver unidade de tradição, de escola teológica e de liturgia, no máximo poderia-se tolerar ritos além do Romano, contanto que fossem assimilados com elementos a fim de os tornarem mais 'agradáveis' ao modo ocidental. Esses missionários se lançaram em terras de maioria ortodoxa (ortodoxos bizantinos e orientais ortodoxos), principalmente com e após as Cruzadas, depois de diversos contextos, que não vêm ao caso, conseguiram converter algumas comunidades ao Catolicismo Romano, porém com uma 'educação latinizada', nos mesmos moldes que abordamos mais acima. Em alguns casos, ocorreram processos mais elaborados e complexos, como foi o caso dos eslavos uniatas, com o chamado Sínodo de Zamość, em 1720.



A latinização combatida pelas próprias autoridades da Igreja

Apesar das ações muitas vezes controversas de algumas autoridades eclesiásticas quanto ao assunto, os Papas e demais autoridades também se colocaram contra à latinização.

O texto da União de Brest, documento primaz e importante para todos os católicos orientais, pois é o documento de unificação da primeira Igreja Católica de Rito Bizantino, aprovada por Roma em 1595-96, este documento é bem claro ao dizer:

"2. Que o culto divino e todas as orações e serviços de Orthros, Vésperas e os serviços noturnos permaneçam intactos (sem qualquer mudança) para nós de acordo com o antigo costume da Igreja Oriental, a saber: as Santas Liturgias das quais são três, a de São Basílio, de São Crisóstomo e de Epifânio, que é celebrada durante a Grande Quaresma com os Dons Pré-santificados, e todas as outras cerimônias e serviços de nossa Igreja, como os temos tido até agora, pois em Roma estes mesmos serviços são mantidos sob a obediência ao Sumo Pontífice, e que esses serviços sejam em nossa própria língua."

O documento de formalização e união da Igreja Greco-Melquita Católica com Roma, que é oriunda da Igreja Ortodoxa Grega de Antioquia, a Constituição Apostólica Demandatam Coelitus Humilitati Nostrae, do Papa Bento XIV, em 1743, diz que "é proibido a qualquer pessoa, incluindo o Patriarca, mudar, adicionar ou remover qualquer coisa do Rito Bizantino e usos" (parágrafo 3)

Outra citação do mesmo Papa em outro documento:

“Aprendemos de muitas outras indicações que os missionários latinos devotam pensamento e cuidado para destruir ou pelo menos enfraquecer o rito oriental no curso da conversão dos orientais do erro do cisma para a unidade da Santa Religião Católica; eles induzem os católicos orientais a abraçar o rito latino ... ”(Papa Bento XIV, Allatae Sunt, 26 de julho de 1755.)

O Papa Leão XIII também se manifestou em defesa das tradições orientais, na grande Carta Apostólica Orientalium Dignitas, em meio ao contexto das ações tendenciosas dos missionários latinos que ainda influenciavam os orientais, o Papa chegou a ser duro quanto à transferência de orientais ao Rito Latino:

”Qualquer missionário de rito latino, seja do clero secular ou religioso, que induzir com seu conselho ou assistência, qualquer fiel de rito oriental a se transferir para o rito latino, será deposto e excluído de seu benefício, além da suspensão ipso facto a divinis e outras punições em que irá incorrer impostas na citada Constituição Demandatam (de Bento XIV). Que este decreto seja fixo e duradouro. Solicitamos que uma cópia dele seja postada abertamente nas igrejas de rito latino.”

Também no mesmo documento:

“A manutenção dos ritos orientais é mais importante do que se poderia imaginar. A augusta antiguidade, que dá dignidade a estes vários ritos, é um adorno de toda a Igreja e um testemunho da unidade divina da fé católica. Talvez nada, de fato, comprove melhor a nota da catolicidade na Igreja de Deus do que a homenagem singular prestada por essas cerimônias que variam em forma, que são celebradas em línguas veneráveis ​​por sua antiguidade, e que são ainda mais santificadas pelo uso que foi feito deles pelos Apóstolos e Padres da Igreja.”


O Papa Pio XII demonstrou um grande e permanente interesse pelo povo ruteno, em 21 de maio de 1939, sob sua direção, foi concluído um tríduo solene iniciado em Roma, na Basílica Vaticana, com ofícios segundo o rito próprio. Isso foi em comemoração ao 950º aniversário do batismo de São Vladimir.

“Cada nação de rito oriental deve ter sua própria liberdade de direito em tudo o que está relacionado com sua própria história e seu próprio gênio e caráter, salvando sempre a verdade e integridade da doutrina de Jesus Cristo. … Eles nunca serão forçados a abandonar seus próprios ritos legítimos ou a trocar seus próprios costumes veneráveis ​​ou tradicionais por ritos e costumes latinos. Todos estes devem ser tidos em igual consideração e honra, pois eles adornam a Igreja Mãe comum com uma vestimenta real de muitas cores. Na verdade, esta variedade de ritos e costumes, preservando inviolável o que há de mais antigo e mais valioso em cada um, não apresenta nenhum obstáculo a uma unidade verdadeira e genuína ”. Orientalis Ecclesiae, 1944.

O Concílio Vaticano II também vem para combater este sentimento de superioridade:

”A história, as tradições e muitas instituições eclesiásticas claramente atestam quanto deve a Igreja universal às Igrejas Orientais. Por isso, (…) saibam e tenham por certo todos os Orientais que sempre podem e devem observar os seus legítimos ritos litúrgicos e a sua disciplina; e que não serão introduzidas modificações a não ser em razão de um progresso próprio e orgânico. Tudo isto, pois, deve ser observado pelos próprios Orientais com a maior fidelidade.”  

[NT: Excertos dos parágrafos 5 e 6 do Decreto Orientalium Ecclesiarum]


Na história da Igreja Melquita, houve grandes batalhas a respeito do tema da latinização e em certo momento, ela ficou mais sofisticada, por exemplo:


[Na mentalidade de alguns - A latinização pode ser praticada num contexto de diáspora.]


A esta questão, surgiu a chamada Geração do Cairo, que foi um movimento dentro da Igreja Melquita, sobretudo, para deter as tendências latinizantes, inclusive na diáspora, esta geração era formada por jovens clérigos, que depois seriam ilustres na história melquita, como os Patriarcas Maximus IV e V, o Arcebispo Joseph Tawil e o Metropolita Elias Zoghby. Em tal contexto, damos destaque a Joseph Tawil, que enfrentou a latinização nos EUA e deu início a uma obra maravilhosa de preservação das tradições bizantinas na Igreja Melquita nos EUA. Também é importante ressaltar que a latinização em nenhum contexto é benéfica à saúde da Igreja e à própria unidade, por isso citamos mais uma vez o Papa Bento XIV: 

“O Direito Canônico decreta que o rito oriental e grego não deve ser misturado com o rito latino. Veja todo o Decretal de Celestino III, em Gonzales, cap. Cum secundum: de temporibus Ordinationum; no decreto de Inocêncio III, ver cap. Quanto: de consuetudine; indivíduo. Quoniam: de Officio Judic. Ordinar .; e o Decretal de Honório III, cap. Literas: de celebrat. Missar. ” - ALLATAE SUNT, 26 de julho de 1755.

No mesmo ensejo, citamos o Arcebispo Joseph Tawil: 

“Não só é desnecessário adotar os modos do Rito Latino para manifestar o Catolicismo, como isso é uma ofensa à unidade da Igreja."



Conclusão

Poderíamos citar mais documentos e grandes autores e também analisarmos a questão por outros focos para comprovarmos que a latinização é uma prática advinda de uma mentalidade completamente equivocada e hoje anacrônica, no mínimo, ela não é necessária muito menos nos países de origem e nem também nas diásporas, por ser anacrônica, é um absurdo tal relutância nos dias de hoje, pois já deveríamos ter 'virado a página'. 

A Igreja, em sua catolicidade, sempre teve a diversidade sóbria como identidade, isso falando da Igreja em seu primeiro milênio, a Igreja é 'koinonia', é comunhão dos irmãos em sua diversidade de tradições e usos.


Haverá continuação...


Nilo

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